Meu 31 de Julho de 2017

Lendo meu livro favorito de Karl Barth, Die Protestantische Theologie im 19. Jahrhundert, (EVZ – Evangelischer Verlag Zürich, Zürich, 1946), que é infinitamente superior a algo parecido que Paul Tillich tentou fazer e saiu, a meu ver, e com o respeito devido, razão pela qual uso o alemão, eine grosse Schweinerei, encontrei uma passagem em que Barth cita uma observação feita por Albert Schweizer sobre David Friedrich Strauss, um de meus malvados e hereges favoritos: “Man muss Strauss lieben, um ihn zu verstehen”: “Para entender Strauss é preciso ama-lo”. Não posso dizer que “amo” Strauss, mas gosto bastante dele, gosto do que ele escreveu, particularmente, e, com base no que escreveu, considero-o uma pessoa de bem. Considero isso suficiente para entendê-lo – e eu creio que o entenda, como pretendo demonstrar num exemplo específico logo a seguir. A afirmação de Schweitzer foi feita em um outro de meus livros favoritos na área da História do Pensamento Cristão: Von Reimarus zu Wrede: Eine Geschichte der Leben-Jesu-Forschung (J. C. B. Mohr / Paul Siebeck, Tübingen, 1906). Meu primeiro trabalho sério de História da Igreja foi feito sobre “A Busca do Jesus Histórico”, em 1965, sob a orientação de Osmundo Affonso Miranda, que me deu a primeira cópia do livro de Schweitzer que tenho (tenho três).

Mas o que justifica ter tanta referência a Strauss em um blog sobre os 500 Anos da Reforma Luterana é uma citação de Strauss sobre Lutero, que Barth também cuidadosamente registra.

Strauss (1808-1874) é um dos personagens alemães do século 19 que a gente não sabe muito bem se era historiador, teólogo, simplesmente escritor genérico, agent provocateur, ou o quê. Boa parte dos indivíduos pertencentes às classes mais favorecidas na Alemanha do século 19 parecia ser capaz de viver simplesmente escrevendo sobre o que lhe ocorresse, sem precisar ter um meio de vida, hoje chamado de emprego regular. Em 1837, chegando aos 30 anos, Strauss concluiu que a vida de um “cientista puro” era muito chata, pois ele não foi moldado para ser um Gelehrte, um scholar. O que o desclassificava para essa função, concluiu ele, eram duas coisas: primeiro, seus interesses variavam muito conforme a sua disposição e o seu estado de espírito (Stimmung), o seu mood; ser-lhe-ia difícil perseguir um assunto só, obstinadamente, por muito tempo…; segundo, ele se ocupava muito consigo próprio, com as coisas que lhe ocorriam ou passavam pela cabeça, e isso influenciava o que escrevia – algo que, segundo tudo indicava, não devia acontecer com um cientista (que, supostamente, deixaria o eu em casa quando fosse para o tabalho…). Se alguém teve dificuldade em entender por que eu gosto de Strauss, essa resposta dele explica: identifico-me totalmente com ela/ele. Meus interesses são muitos, e eles flutuam e se alternam com grande rapidez. Além disso, meus escritos também têm muito de mim: sou autobiográfico ao extremo. Qualquer que seja o assunto sobre o qual esteja escrevendo acabo achando um jeito de falar de mim no meio do assunto principal… Embora tente ser objetivo e imparcial, nunca escondo meus gostos e minhas preferências, sempre me revelo…

Uma vez Strauss pensou em escrever uma biografia de Lutero. Não porque tivesse lido bastante Lutero e concluído que o reformador patrício (dele) merecesse mais uma biografia. Não. Resolveu escrever porque isso lhe ocorreu – e começou a estudar a vida e o pensamento de seu biografado (mais ou menos como eu estou fazendo neste ano de “500 Anos”). Strauss desistiu logo – talvez não na primeira curva, mas depois de correr umas poucas voltas. Eu ainda não. Ele havia firmado juízo sobre Lutero. Eu também o fiz, mas só em parte. Eis o juízo de Strauss:

 “Um homem para o qual tudo depende e gira em torno de sua consciência de que ele e todos os demais seres humanos são, em si próprios, totalmente corrompidos e depravados, e destinados a danar por toda eternidade no Inferno, do qual só podem ser redimidos através do sangue de Cristo e de sua fé no poder desse sangue… Um homem que tem isso como o núcleo central de sua consciência é tão alheio a mim, tão impossível de compreender que eu nunca seria capaz de escrever uma biografia sobre ele.  Não importa que outras qualidades eu pudesse encontrar nele, que eu admirasse ou mesmo amasse, esse núcleo central de sua consciência me repugna tanto que nunca poderia existir entre mim e ele aquele mínimo de simpatia que é indispensável entre o biógrafo e seu herói” [minha tradução, cotejando o original alemão e a tradução para o inglês].

O que dizer?

Eu digo que me agrada que alguém, do porte intelectual de um Strauss, tenha a coragem e a franqueza de, ao ler Lutero com cuidado e atenção, dizer isso, dizer que acha que o núcleo duro, o hard core, de sua consciência é repugnante. Porque eu concordo com Strauss em sua estimativa.

Como ele, acho inúmeras qualidades em Lutero que eu respeito e admiro. A coragem dele em Worms foi magnífica! Houve momentos de insight e illuminatio que ele teve em Wartburgo que foram fantásticos… Lendo suas obras, acho trechos que me emocionam e comovem.

Luteranos e Calvinistas vão precisar encontrar um jeito de rever ou drasticamente reinterpretar as teses que compõem o que Strauss identificou como o núcleo central da consciência de Lutero, que é também a de Calvino, ou as Igrejas Luteranas e Calvinistas ortodoxas (nesse aspecto) vão perder cada vez mais membros para igrejas que têm uma visão mais arminiana da coisa… Não hesito em dizer que a maioria dos membros nas naves das Igrejas Luteranas e Calvinistas é, nesse aspecto da coisa, arminiana e não luterana ou calvinista. Talvez isso até se dê com seus seminaristas. Que a principal causa de discórdia e cisma nessas igrejas acabe sempre tendo que ver com esse núcleo central, com a visão do pecado original e da total corrupção e depravação da natureza humana que ela implica, bem como com a dupla predestinação, que lhe é consequência lógica, é sinal de que muitos de seus pastores convivem mal com essa “consciência repugnante”, como a chamou Strauss.

Que o ser humano seja inclinado para o mal, por sua própria natureza, seja por falha de projeto ou por problema na produção, é admissível aceitar (fazendo-se os ajustes necessários na doutrina de Deus). O que é pior: fazer esses ajustes ou continuar aceitando que boa parte dos seres humanos está condenada às penas eternas por nenhuma outra razão a não ser que Deus arbitrariamente assim o deseja. O pessoal que entrava em êxtase ao imaginar os não-eleitos frigindo nas chamas eternas do Inferno saiu (no caso da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil) e foi fundar a Igreja Presbiteriana Conservadora. O pessoal que achava que a natureza do ser humano é basicamente boa foi fundar a Igreja Cristã de São Paulo, liberal, que não vingou. Ficaram os que não se achavam extremistas. Mas eles aceitam o núcleo central da consciência de Lutero e Calvino? Sim? Por que então não saíram com os conservadores? Não? E pretendem fazer o quê, cobrir o Sol com uma peneira, brincar de fazer de conta? Quousque tandem? E o semper reformanda? Será que isto é menos sério do que a Maçonaria?

Em Salto, 31 de Julho de 2017

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