Duas Críticas Sucintas às Igrejas Históricas Surgidas na Reforma

Escrevo este despretensioso artigo no dia 31/10/2017 – o dia em que se comemoram os 500 Anos da Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero em Wittenberg, através da divulgação de suas 95 Teses contra as Indulgências promulgadas e comercializadas pela Igreja Católica com a finalidade (neste caso – houve várias outras promulgações e comercializações de Indulgências) de reformar / (re)construir a Basílica de São Pedro, em Roma – uma iniciativa do Papa Leão X, membro da poderosa família Medici (o seu nome de nascimento era Giovanni di Lorenzo de Medici), que ocupou o chamado Trono de São Pedro de 9 de Março de 1513 a 1o de Dezembro de 1521.

Os protestantes, de toda e qualquer extração, mas especialmente aqueles que pertencem às denominações que se consideram “históricas” e “magisteriais” (Luterana, Anglicana / Episcopal, Presbiteriana [conhecida simplesmente como Reformada na Europa]), estão excitadíssimos com o aniversário. Têm razão: não é sempre que se tem um aniversário “redondo” tão significativo como “500 Anos” – “Meio Milênio” de Protestantismo, “and going strong”, como se diz na “Matriz”… (Chama-se de “Reforma Magisterial” aquela em que a igreja resultante foi criada com vínculo com o Estado ou com o respaldo do Estado [daí vem o “Magisterial”, referente a Magistrado]).

Na verdade, o “and going strong” usado atrás é meio inadequado, porque as Igrejas Protestantes Históricas não estão tão bem assim – pelo menos não tão bem quanto as Igrejas Protestantes Não-Históricas, em especial as Pentecostais e Neo-Pentecostais – estas, sim, “going VERY strong”.

Sem pretender diminuir o brilho da festa, que, aqui no Brasil, tem contado com a inestimável divulgação da Rede Globo de Televisão, quero fazer duas breves críticas a essas Igrejas Protestantes Históricas, em especial a dois mitos criados em torno da Reforma e consolidados em belas frases em latim.

A primeira frase é a seguinte: [1]

“In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas”

“No essencial, unidade; naquilo em que há dúvida, liberdade; em tudo, amor”

A frase é sem dúvida muito bonita e admirável. Ela é citada por muita gente como se fosse de fato praticada. Na verdade, apesar de sua beleza, ela apresenta uma dificuldade quase intransponível: determinar quais são os artigos de fé e de conduta essenciais (e, portanto, obrigatórios ou proibidos) e quais são aqueles que, por haver dúvida quanto à sua essencialidade, podem ser aceitos ou rejeitados (sendo chamados, por vezes, pelo termo grego “adiaphora[2], que significa basicamente “aquelas coisas que são indiferentes”, acerca das quais não é possível dizer que sejam essenciais, isto é, ou obrigatórias ou proibidas).

Não sendo fácil, ou mesmo (em alguns casos) possível, determinar se um artigo de fé ou de conduta é essencial, a tendência tem sido (in dubio) considera-lo essencial – deixando à categoria dos adiaphora apenas alguns poucos itens bastante insignificantes.

Ilustro: a existência de Deus, a  criação e a providência divina, a divindade de Cristo, o significado redentor da morte de Cristo, a vida eterna, a segunda vinda de Cristo, o Julgamento Final, etc. todos esses, e vários outros itens, é compreensível que sejam considerados parte da essência da fé cristã; os Dez Mandamentos e a Lei Áurea, é compreensível que sejam considerados parte da essência da conduta cristã. Mas e a chamada “doutrina das penas eternas”, que pressupõe, de alguma forma, as doutrinas da predestinação e da eleição, e que afirma que, desde antes da criação do mundo, Deus, através de seus decretos eternos (e insondáveis), determinou, por seu livre, espontâneo e soberano arbítrio, e não simplesmente previu por sua onisciência, que alguns seres humanos estariam fatalmente condenados à perdição, e que passariam toda a eternidade sofrendo as mais duras e dolorosas penas no Inferno – essa doutrina é essencial? Alguns acham que não – mas há alguns que acham que sim, tanto que a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, da qual sou membro, já se dividiu, em 1940, depois de uma discussão acrimoniosa que durou dois anos, a propósito exatamente dessa questão.

Aumentando de forma exagerada aquilo que faz parte do essencial, membros conservadores das Igrejas oriundas da Reforma, conseguiram impor uma ortodoxia que hoje causa mais problemas do que soluciona. No caso das Igrejas Presbiterianas, a adesão cega a uma Confissão de Fé redigida e aprovada na primeira metade do Século 17, na Inglaterra, na cidade de Westminster, a Confissão de Westminster, tem sido causa de inúmeras cisões – lá fora e aqui. Muitas igrejas presbiterianas já retiraram a Confissão de Fé de Westminster da lista de itens essenciais de aceitação e fé, adotando Confissões de Fé menos abrangentes, detalhistas e rígidas. Mas as Igrejas Presbiterianas brasileiras não tiveram ainda coragem de fazer isso – embora algumas, como aquela de que sou membro, tenha ensaiado fazer isso algumas vezes.

Vamos à segunda frase latina:

Ecclesia reformata semper reformanda[3]

“A Igreja Reformada é uma igreja que sempre se reforma”

Novamente, a frase é bonita e admirável. O problema está no fato de que ela normalmente recebe uma interpretação (que eu considero totalmente questionável) de que o pensamento dos reformadores do Século 16 e das Confissões dos Séculos 16 e 17 é o limite admissível para qualquer reforma adicional. Assim, admite-se que o “semper reformanda” só seja aplicável no caso de igrejas que se desviaram do pensamento dos reformadores do Século 16 e das Confissões dos Séculos 16 e 17 e, querem, agora, voltar a ele. Novas reformas, que contradigam ou ultrapassem esse pensamento, que adquiriu característica de norma, são inadmissíveis.

Concluindo: através de uma hermenêutica conservadora, as Igrejas Históricas surgidas na Reforma do Século 16 em geral conseguem se congelar no tempo, expurgando delas quem ousa propor ou protagonizar reformas que vão além do pensamento já consagrado nos Séculos 16 e 17.

Se continuaram nessa prática por muito tempo, vão se tornar, se é que algumas delas já não são, peças de museu.

NOTAS

[1] Há até uma página na Wikipedia US sobre a frase, cuja autoria, por muitos atribuída a Santo Agostinho, é disputada. Vide https://en.wikipedia.org/wiki/In_necessariis_unitas,_in_dubiis_libertas,_in_omnibus_caritas.

[2] Também há um artigo na Wikipedia US sobre esse termo: https://en.wikipedia.org/wiki/Adiaphora.

[3] Vide Wikipedia US: https://en.wikipedia.org/wiki/Ecclesia_semper_reformanda_est; vide também o site Presbyterian Mission da Presbyterian Church (USA), em https://www.presbyterianmission.org/what-we-believe/ecclesia-reformata/.

Em São Paulo, 31 de Outubro de 2017

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